Ciência, religião e arte


A vontade de ser professor levou Cesar Lattes a escolher a Física
O descobridor dos mésons pi é também um grande contador de histórias

Cesar Lattes é um dos maiores cientistas brasileiros. O curitibano é conhecido mundialmente como um dos responsáveis pela descoberta do méson pi, a partícula subatômica que garante a coesão do núcleo do átomo. Mas o único físico brasileiro citado na Encyclopaedia Britannica é extremamente modesto. Quando fala sobre essa menção, Lattes não a atribui a um mérito seu, mas a um erro da publicação.

Lattes é simpático, risonho, brincalhão. No Hotel Paissandu, seu favorito no Rio de Janeiro, ele recebeu a Ciência Hoje on-line para entrevista e se revelou um grande contador de histórias. A conversa sobre a descoberta do méson pi, sua passagem pelas Universidades de Bristol e Berkeley e sua carreira foi toda pontuada por divertidos casos por que passou. Ele contou, por exemplo, que na viagem para a Bolívia em que provaria a existência do méson pi, recebeu a recomendação de voar pela British Airways. Lattes contrariou a indicação e preferiu a Panair, por motivos banais: o avião era mais confortável, e a comida, mais gostosa ("eles serviam filé mignon", lembra). Lattes soube mais tarde que o avião da British que o levaria havia caído, sem deixar sobreviventes.

Entre um e outro cigarro com o filtro arrancado, Lattes, que recebeu da Universidade de São Paulo (USP) o título de doutor Honoris causa, se diz contra a pós-graduação. "Grandes físicos como [Niels] Bohr e [Wolfgang] Pauli fizeram importantes descobertas antes dos 25 anos, e hoje um físico só acaba sua formação com 30 ou 40", defende. Essa postura, porém, não impediu que Lattes participasse da fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e de integrar a comissão que fez a lei de criação do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).

Questionado sobre sua religião, Lattes se disse ao mesmo tempo católico apostólico romano, muçulmano e cristão ortodoxo - mas principalmente judeu. Ele não vê nenhuma contradição nisso: "boa vontade é minha religião". O físico gosta de ler a Bíblia, de onde tirou uma frase de Salomão que sempre cita: "a sabedoria não entra de jeito algum na alma malvada". Lattes lamenta que o mesmo não aconteça com a ciência, que chegou a produzir a bomba atômica. Ele não vê com bons olhos as experiências com transgênicos ("os alimentos naturais têm três bilhões de anos de Procon!") e com a clonagem, em especial a de seres humanos ("há meios tão melhores de se fazer isso...").

O reconhecimento de Lattes não é restrito ao meio acadêmico: o físico já foi citado até por Cartola, no samba "Ciência e arte". Mas ele só soube do fato recentemente, quando Gilberto Gil lhe pediu que corrigisse as letras e escrevesse uma introdução para seu CD Quanta. Na carta que apresenta o disco, Lattes reconhece similaridades entre duas paixões de sua vida: "a ciência é uma irmã caçula (talvez bastarda) da arte".


Cesar Lattes faleceu em Campinas em 8 de março de 2005, aos 80 anos.

Fonte: RAMALHO, Renata, Ciência Hoje/RJ

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